“Quero dizer aos companheiros da Bahia — há pouco ouvi um parlamentar criticar os grupos de extermínio — que enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o meu apoio, porque no meu estado só as pessoas inocentes são dizimadas. Na Bahia, pelas informações que tenho — lógico que são grupos ilegais —, a marginalidade tem decrescido. Meus parabéns”!
Muitos dos criminosos parabenizados pelo parlamentar por seus feitos não tinham rosto mas os crimes tem números. No ano de 2000, foram 146 registros de mortos em ação de grupos de extermínio apenas na capital Salvador. Maioria absoluta de jovens negros e favelados. Subiu drasticamente no ano seguinte, indo para 321 assassinados por esses esquadrões da morte. Em 2002, 302 assassinatos. Os números são da “Comissão de Direitos Humanos” da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia (Alba) daquele mesmo ano do discurso de Bolsonaro. A dimensão do genocídio gerou uma Comissão Parlamentar de Inquérito na assembleia baiana.
Os assassinatos eram parte de um comércio que financiou o grupo de extermínio exaltado pelo parlamentar.
É o que mostra uma das mais completas abordagens sobre o tema.
Autor de minucioso estudo (“Entre o vigilantismo e o empreendedorismo violento”) para mestrado em Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia (UFBA), com recorte nesses grupos que agiram na Bahia naqueles anos, o advogado Bruno Teixeira Bahia relata as características de tais ações e grupos. “Eram compostos, em sua maioria, por policiais e ex-policiais civis e militares, ressaltando, ainda, que em quase todos os casos as vítimas eram jovens, negros e pobres, com idade entre 14 e 26 anos e sem passagem pela polícia”, está na peça.
Os assassinatos destacados como política de segurança por Bolsonaro em sua maioria eram precedidos de tortura, de acordo com o estudo. “As vítimas, em geral, são encontradas com marcas de tiros em pontos vitais, geralmente na cabeça, nuca e ouvido. Além dos disparos, também eram levadas em consideração outras marcas deixadas nos corpos das vítimas, como mãos amarradas, sinais de tortura, tais como unhas e dentes arrancados, hematomas por todo o corpo e, às vezes, o ateamento de fogo ao cadáver”.
Outra característica apontada no trabalho de Bruno Teixeira Bahia é a absoluta impunidade e conivência do poder público com tais práticas. “O chefe do Poder Executivo (à época Governador Paulo Souto), apesar das evidências, negava a existência de tais grupos, estratégia também utilizada pela Secretaria de Segurança Pública, a qual atuava de forma isolada e não respondia a nenhum ofício ou questionamento da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, nem de qualquer outra Comissão de Direitos Humanos”, relata.
Entre tantos, provavelmente o mais contundente dado é comprovação das investigações e inquéritos judiciais, além da CPI, de que o extermínio organizado foi um grande comércio. De vida e morte. Em Juazeiro, interior do estado, as mortes eram encomendadas muitas vezes por comerciantes. Valores entre R$ 50 e R$ 100 pagavam um assassino de aluguel desses grupos.
“Uma quadrilha formada por comerciantes que pagavam a importância de 50 a 100 reais pela morte de delinquentes com diversas entradas na delegacia regional de Juazeiro por pequenos crimes contra o patrimônio. Apesar do reconhecimento oficial da existência de um grupo que trabalhava em prol do extermínio de pessoas com passagens pela polícia, inclusive com a descoberta de uma rede de pagamento formada por comerciantes locais, o silêncio marcou o depoimento do então comandante da polícia de Juazeiro quando a questão era quem seriam ou como agiam os executores”, conta o advogado e cientista social.
Depoimento tomado junto a policial revela discurso bem próximo ao do parlamentar. As definições “pessoas boas”, “vagabundo”, além da reclamação pela existência de leis que proíbem o assassinato, comuns no discurso do parlamentar, estão presentes na fala do integrante do grupo:
“E é assim, a nossa tristeza é porque a população as pessoas boas merecem um bairro com respeito, eles não tem. O vagabundo mata, estupra, faz e acontece, ninguém toma providência”, justifica o policial.
Transformado em negócio por essas milícias, os assassinatos exaltados por Bolsonaro logo cruzaram novas fronteiras. Pela remuneração, o alvo dos exterminadores se ampliou. “O entrevistado também destacou que somente matou bandido e confessou ter feito isso tanto em serviço como para ganhar dinheiro de comerciantes. Contudo, relatou que nesta prática ‘às vezes as coisas fugiam um pouco do controle’, confirmando que nem sempre os alvos dos integrantes do grupo eram bandidos, como no caso descrito no parágrafo anterior e como em outras oportunidades quando algum policial que agia no grupo resolvia matar outras pessoas, mesmo que estas não tivessem envolvimento na prática de crimes”.
O autor aponta ainda como a suposta solução do “bandido bom é bandido morto” logo se transforma em mercado:
“O uso da violência pelos membros de um grupo de extermínio não pode ser limitado à concepção de combate à ação dos “bichos” ou dos “bandidos”. Ser capaz de usar a violência e estar disposto a fazê-lo diferencia o agente no meio social em que vive e o credencia a usar suas habilidades como capital social dentro de um mercado econômico, já que, como visto, não há controles informais que o impeça de assim agir. A capacidade no uso da violência, como desenvolvimento de uma carreira moral, torna o agente, perante a sociedade, especializado para a realização de atividades com valor financeiro, em um verdadeiro mercado da violência”.
A política de eliminação transformada em negócio logo vira relação promíscua, como está em depoimento do livro de Bruno Teixeira Bahia. “E também tem assim, se tem os traficantes que a gente já conhece “das antiga”, da nossa época, ele comanda a porra dele, tipo assim, ele não deixava que nada acontecesse naquela área e a gente ficava de boa, e cá também, ele não bagunça e a gente fica de boa. Tinha um que “pagava a etapa” toda semana”.
A morte vira lucrativa ferramenta nesse tipo de política de segurança.
“Se o agente se acostuma ao uso da violência e desenvolve habilidades no trato com a mesma não é desarrazoado supor que tais habilidades o acompanhem tanto em tarefas exercitadas fora do policiamento oficial, quanto nos chamados serviços de seguranças clandestinos. Do combate à criminalidade, à resolução de contendas pessoais, passando pela venda dos serviços no setor privado, seja lícito (comércio) ou ilícito (tráfico de drogas), a morte se apresenta como uma ferramenta, afiada e azeitada por anos dentro das práticas policiais”.
Outro lado:
A reportagem tentou contato com Jair Bolsonaro sobre o tema sem êxito.
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