Atendendo populações carentes do interior dos estados e das periferias das grandes cidades brasileiras há cinco anos, os profissionais cubanos deixarão de atuar pelo Mais Médicos a partir de janeiro, quando começa a gestão Jair Bolsonaro, que exigiu mudanças no acordo. A decisão do governo de Cuba de encerrar a participação no programa, motivada por “declarações depreciativas e ameaçadoras” do presidente eleito, segundo os cubanos, foi anunciada ontem pelo Ministério da Saúde daquele país, retirando 8,3 mil médicos no atendimento nos postos de saúde brasileiros. Uma estimativa do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) aponta que 24 milhões de pessoas serão diretamente afetadas.
Em Pernambuco, nono estado com maior atuação de médicos cubanos, serão 414 profissionais a menos, sendo 13 em unidades indígenas. Diante da ameaça de deixar parte da população sem atendimento, o Ministério da Saúde afirmou que abrirá, nos próximos dias, um edital para preenchimento das vagas desocupadas após essa decisão.
Os cubanos respondem por 45% do total das 18,2 mil vagas do programa Mais Médicos no Brasil. Duas mil vagas estão sem profissionais. Os caribenhos começaram a atuar em território brasileiro depois de acordo assinado com a Organização Pan-americana de Saúde (Opas), em 2013, e chegaram a quatro mil municípios. Hoje, as vagas do programa em 1,6 mil municípios brasileiros são preenchidas apenas por cubanos. O número já foi maior, já que desde 2016 o governo brasileiro vem reduzindo a participação deles no programa. Até então, cerca de 11,4 mil cubanos atuavam.
De acordo com o Ministério de Saúde de Cuba, em cinco anos, cerca de 20 mil cubanos trabalharam no Brasil, atendendo 113 milhões de pacientes. Mais de 700 municípios teriam tido acesso a médicos pela primeira vez por meio dessa cooperação. Em nota, o órgão disse que a retirada ocorre devido a posicionamentos do presidente eleito. “As modificações anunciadas impõem condições inaceitáveis e não cumprem as garantias acordadas. Essas inadmissíveis condições tornam impossível a manutenção da presença dos cubanos”, explicou o documento.
O governo cubano não afirmou quando os profissionais regressarão ao país, mas o esperado é que isso ocorra até o fim de dezembro. “Não é aceitável que se questione a dignidade, o profissionalismo e o altruísmo dos cubanos, que prestam serviço em 67 países”, diz outro trecho da nota. Do outro lado, o presidente eleito Jair Bolsonaro afirmou que Cuba não teria aceitado condições como a revalidação do diploma. “Condicionamos a continuidade do programa Mais Médicos à aplicação de teste de capacidade e salário integral aos profissionais cubanos, hoje maior parte destinada à ditadura, e a liberdade para trazerem suas famílias. Infelizmente, Cuba não aceitou”, tuitou. Bolsonaro classificou como a decisão dos cubanos de “irresponsável” perante a população brasileira e ofereceu asilo aos profissionais de saúde do país.
Do primeiro grupo de 206 médicos cubanos que desembarcaram no Brasil em 2013, 30 vieram para o Recife. Hoje, cerca de 10 ainda atuam na capital pernambucana. Alguns dos que chegaram a Pernambuco cumpriram o contrato do programa, depois regressaram ao Brasil para revalidar o diploma e ocupar novamente as vagas do Mais Médicos. Procurada, a Secretaria de Saúde do Recife não comentou a decisão de Cuba. Em Olinda, atuam apenas dois médicos cubanos, dos 11 integrantes do Mais Médicos. A mudança, na visão da secretária-executiva de Saúde do município, Zelma Pessoa, vai gerar um custo adicional à gestão. “Teremos que fazer um reestudo, inclusive com relação ao impacto financeiro na folha de pagamento, para não deixar a população desassistida. É um problema que vai repercutir no planejamento do orçamento”, disse. Atualmente, Olinda tem, pelo menos, nove vagas não preenchidas do Mais Médicos.
Em Jaboatão dos Guararapes, onde atuam 14 médicos cubanos na rede municipal, será feita uma convocação de médicos através de uma seleção simplificada em vigor. Para o secretário de Saúde da cidade, Alberto Lima, a decisão cubana causará prejuízo. “Os médicos brasileiros não querem trabalhar nos locais distantes ou de difícil acesso, o que gera uma grande rotatividade de profissionais nos postos de saúde. Já os cubanos aceitam ir para onde indicamos. Por isso será problema no país inteiro”, disse.
Ministério abre edital para preencher vagas
A participação dos cubanos no Mais Médicos sempre esteve envolvida em um debate sobre a qualidade do sistema público de saúde brasileiro, de trabalho para os médicos e também de acesso da população à saúde. O Ministério da Saúde afirmou que garantirá a assistência à população. Além da abertura do edital de convocação de médicos, o órgão afirmou que poderá ampliar a participação de brasileiros no programa por medidas como a negociação com os alunos formados através do FIES (Programa de Financiamento Estudantil). O Brasil tem hoje 452 mil médicos, número suficiente para a população de 206 milhões de pessoas, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM). O estudo Demografia Médica 2018 mostra, no entanto, que a distribuição desses profissionais é desigual.
A retirada dos cubanos poderá afetar sobretudo o Nordeste, o Norte e as áreas indígenas. Estados como o Maranhão e o Pará tem menos de um médico por 1 mil habitantes, menos do que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Nas capitais, onde vivem 23,8% dos brasileiros, estão 55,1% dos médicos. A razão do conjunto das capitais é de 5,07 médicos por mil habitantes. No interior, a razão corresponde a 1,28. Em lugares como o Amazonas, 93% dos médicos estão em Manaus.
O presidente do Sindicato dos Médicos de Pernambuco (Simepe), Tadeu Calheiros, defende que o país tem médico suficiente para ocupar as vagas deixadas pelos cubanos. “O que falta são condições dignas, já que os postos estão sucateados, e uma carreira médica de estado, como acontece com o direito. Médicos serem servidores públicos federais. Apenas ter o médico no interior é dar uma falsa sensação de saúde”, disse. O Conselho de Medicina de Pernambuco (Cremepe) não se posicionou.
Profissional que já atuou com médicos cubanos em países como Moçambique e em regiões brasileiras como o Amazonas e o Nordeste, o infectologista e professor Rafael Sacramento recebeu com tristeza a notícia. “Comecei a trabalhar com eles em 2009. Vi na prática, antes de essa discussão assumir um aspecto partidário, que não tem sentido o questionamento técnico dos cubanos. Eles são tecnicamente e eticamente muito bons. Vi várias comunidades indígenas se surpreenderem porque teriam pela primeira vez um médico para chamar de seu. Vi médico cubano permanecer atendendo quando a comunidade estava sem nenhum abastecimento de suprimento básico. Não podemos ter essa impressão urbanóide, do contexto da capital”, lamentou, emocionado.
No Recife, a cozinheira Cármen Ferreira, 58 anos, agradece até hoje a descoberta de um cisto no pescoço a um cubano. “Era um médico muito bom, fui na casa dele. Já fui atendida no posto por outro cubano, ele é muito atencioso, examina o paciente todo, procuram a fundo a situação para conversar, almoça junto de todo mundo, não tem preconceito. O outro brasileiro que tinha aqui era muito ignorante”, diz.