O presidente da República, Jair Bolsonaro, deu o recado em seu discurso de posse, no já distante 1º de janeiro. Avisou que reconstruiria a nação, defendeu o fim da “corrupção e os privilégios” e garantiu que enfrentaria a crise econômica e o desemprego. Comprometeu-se, ainda, a governar sobre os costumes. Contra as “ideologias que destroem nossos valores e tradições”, contra a “ideologização das nossas crianças” e o “desvirtuamento dos direitos humanos e da desconstrução da família”. Com a crise econômica ainda à porta, o desemprego persistente e as denúncias que, logo na largada do governo, desgastaram o senador Flávio Bolsonaro, por causa da mal explicada ação do assessor Fabrício Queiroz, sobressaiu-se a pauta dos costumes.
E, nesse caminho, o presidente segue por um eixo que não conversa com todos os eleitores, o coloca em uma posição desfavorável diante do Congresso e pode trazer prejuízos, inclusive, no que tange à política internacional do país, conforme avaliam cientistas políticos. Essa pauta dos costumes, que a deputada Bia Kicis (PSL-DF) traduz como “valores conservadores”, vem da campanha. Balizaram, inclusive, a escolha de ministros como Damares Alves (Mulher e Direitos Humanos), Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Vélez Rodríguez (Educação), que está perto de ser demitido.
Para os partidos de esquerda, que assistiram à ascensão de Bolsonaro desmobilizados e sem propostas combativas, esse destaque da pauta de costumes veio a calhar. Num caminho fácil, passaram a perseguir os tuítes desconcertantes do presidente, em especial, aqueles com ataques à imprensa e vídeos de cunho sexual — como o do “golden shower” no carnaval. Também investiram no discurso contra afirmações, até então, impensáveis na boca de dirigentes do país, como o “nazismo de esquerda”, do chanceler; e o “menino veste azul e menina veste rosa”, de Damares. Isso sem contar as tentativas de Vélez de revisionismo nos livros didáticos e pedidos de filmagens de crianças e adolescentes cantando o Hino Nacional.
Nesse meio tempo, inclusive, o MEC já ruía em disputas internas entre militares e seguidores do escritor Olavo de Carvalho, guru do presidente e também ligado à pauta de costumes. Foi tanta confusão no MEC que até o escritor Olavo de Carvalho, guru dessa pauta e tido como o padrinho de Velez, fritou o ministro. “Falei com esse ministro duas vezes, uma para cumprimentá-lo pela posse, outra mandar enfiar o Ministério (...)”, disse Olavo às vésperas de Bolsonaro desembarcar em Washington, em evento no Hotel Trump International.
Governo dividido
Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Paulo César Nascimento vê um contraste entre o núcleo moral e o técnico — que inclui os ministros Paulo Guedes (Economia) e Sérgio Moro (Segurança Pública). Essa divisão torna o Executivo “incoerente na conduta”. “O presidente tem uma carga ideológica muito grande, embora as responsabilidades do cargo o façam baixar o tom”, avalia, referindo-se especialmente ao relacionamento com o Congresso. “Houve confusão, ele não parecia empenhado em aprovar a reforma da Previdência, bateu boca com o presidente da Câmara, mas, me parece, essa questão foi abandonada. A realidade se impôs. Mas ele oscila, é verdade, e os filhos não ajudam”, pondera.
Nascimento observa que Bolsonaro não foi eleito apenas pelos votos dos “moralistas” e terá que maneirar, sob o risco de se desgastar. “Toda vez que ele finca uma bandeira ideológica, a contrarreação é muito grande. Ou ele recua, ou se desgasta, e corre o risco de se isolar politicamente”, alerta.
O cientista político Andre Roberto Martin, professor de Geografia Política da Universidade de São Paulo (USP) considera que Bolsonaro “exagerou no ativismo ideológico, queimou muito rápido o capital político e precipitou para abril crises previstas para maio”. Sérgio Praça, professor de ciências políticas da Fundação Getulio Vargas, diz que essa pauta ajudou a desgastar a popularidade do governo: “Não está claro para ninguém o quanto o eleitor deseja isso. A impressão que eu tenho é de que não é com isso que o brasileiro médio está preocupado. Não à toa, acho que o foco nessas políticas morais, de costumes, pode ter desgastado o governo nesse início. A popularidade do presidente caiu”, destaca.
Martin considera que os principais pontos afetados com a guerra cultural e a agenda de costumes são a política externa, a economia e a educação. Ele acredita que o presidente não tinha uma estratégia completa de governo e a compôs a partir de algumas diretrizes ideológicas que usou na campanha. O professor de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Paulo Baía vê nessas diretrizes uma forma de aglutinar os bolsonaristas. “Isso tem um objetivo interno, que é reforçar o núcleo duro do bolsonarismo. O governo pode perder a ‘periferia’, mas seu núcleo de apoio fica cada vez mais fanático”, analisa. Ele acredita, no entanto, que o restante de 2019 será pautado pelo debate da reforma da Previdência e do pacote anticrime do ministro Sérgio Moro.